Jogo do Tigre: Esse não é um debate moral

No último domingo, dia 3 de dezembro, o Fantástico exibiu uma reportagem sobre o “Jogo do Tigre”, um esquema de apostas que vem sendo difundido por uma rede de influenciadores em todo o Brasil. O assunto vem sendo bastante comentado no quase semi-falecido-mas-sobrevivendo-por-aparelhos ex-Twitter desde então, mas não é exatamente uma grande novidade pra quem trabalha com criação de conteúdo. Esse não é nem o primeiro nem o último caso de publicidades que no mínimo “desafiam” os limites da ética no ecossistema da chamada “creator economy” e literalmente todos criadores que eu conheço já receberam pelo menos um e-mail meio “esquisito”.

Eu mesmo já recebi propostas de joguinhos de aposta, mas nunca cheguei na fase de precificação, pois sempre recusei no primeiro contato. Já recebi propostas piores e "melhores" que foram imediatamente recusadas devido a questões editoriais, posicionamento político e ético, entre outros motivos. E isso não é sinalização de virtude ou algo do tipo. Por algum motivo, esse assunto sempre cai nessa armadilha retórica onde todo mundo revela se “faria” ou “não faria” esse tipo de publicidade. Quero falar um pouco sobre isso no decorrer desse texto.

O fato é: depois de quase cinco anos trabalhando com criação, hoje posso escolher muito bem as marcas com as quais faço parceria. Mas toda vez que falo sobre isso em situações sociais, tipo em mesas de bar, com amigos e conhecidos, tem sempre alguém que comenta "se fosse eu, toparia tudo" ou "pagou, eu faço" em diferentes graus de seriedade.

Curiosamente, a maioria desses comentários vem de pessoas que não trabalham com conteúdo, o que torna ainda mais difícil avaliar se essas afirmações são de fato honestas. É um campo especulativo equivalente a “o que você faria com um milhão de dólares” ou “o que você faria se fosse a Virginia Fonseca por um dia”. Conversa de bar, claro, mas ainda assim, estamos falando do meu trabalho, do universo profissional onde estou diariamente inserido, então a pergunta persiste: diante das devidas circunstâncias, será que essas pessoas, meus amigos e familiares, realmente topariam divulgar um joguinho de aposta?

Considerando o atual estado da internet, acredito que a resposta seja sim. E isso não é um julgamento moral sobre essas pessoas individualmente. Essa não é uma discussão primordialmente moral.

Publi não-sinalizada é pecado

Mas, antes de especular o que está por trás desse “sim”,  eu quero falar sobre a razão de eu especificamente não aceitar fazer "qualquer" publicidade. Hoje existem segmentos inteiros com os quais eu simplesmente me recuso a trabalhar. Não é só joguinho de aposta. Não vou entrar em detalhes, mas quero explicar meus principais motivos.

O principal deles é o posicionamento político. Se uma marca apoia ou financia certas figuras políticas, ou, se o segmento em si impulsiona e/ou depende de precarização de trabalho, não existe conversa. Obrigado pelo interesse e até a próxima. Com isso, acredito que vocês tenham informações suficientes pra deduzir algumas coisas.

Meu segundo motivo é, claro, a estratégia profissional. Ao contrário do que pode parecer, o que eu e muitos outros criadores fazemos é um trabalho que demanda estratégia e planejamento a médio e longo prazo. Isso é essencial para manter um negócio minimamente sustentável. E o meu “asset” profissional  mais precioso hoje é a minha audiência, que foi construída com muito esforço e dedicação. A pior coisa que poderia me acontecer profissionalmente seria alienar esse público.

Existem, claro, diversas maneiras de conseguir essa “proeza”. E isso varia de criador para criador. O tipo de conteúdo que eu produzo hoje constrói uma relação específica com uma audiência específica que confia em mim, que confia na minha integridade e no que eu comunico. Quebrar essa confiança seria desastroso pra mim.

Está tudo normal

Uma má curadoria de parceiros comerciais significa minha imagem e voz associadas a um produto questionável. A grana pode ser boa ali naquele momento, mas valeria a pena jogar fora o trabalho de construção de comunidade e audiência que me custou anos de dedicação?

Dito isso, reconheço que estou em relativa posição de privilégio.  Tenho uma agência que me dá todo o suporte que preciso e me empodera a decidir por mim mesmo o meu futuro profissional. Esse NÃO é o caso da maioria das pessoas que trabalham nesse segmento.

A precarização do trabalho na criação está avançando a passos muito largos. Muita gente tá sendo “empurrada” pra esse segmento com promessas de enriquecimento instantâneo, o que não é um objetivo profissional realista para a grande maioria da população do planeta em nenhum lugar. As políticas de austeridade, guerras e colapso climático empurram bilhões para a pobreza extrema no mundo inteiro e o avanço da retórica neoliberal hiperindividualista nos empurra para a lógica do “cada um por si”. E isso gera problemas em todos os setores da sociedade em diferentes proporções.

De acordo com a pesquisa Creators e Negócios 2023, conduzida pela Brunch em parceria com o Youpix, o rendimento médio de um criador de conteúdo no Brasil não ultrapassa a faixa dos R$5.000 por mês. A grande maioria desses profissionais ganha pouco mais que um salário mínimo (R$1.300). Uma pequena minoria (6,3%) faturou mais de R$20.000 por mês em 2023. A pesquisa completa pode ser acessada aqui.

No contexto da chamada “creator economy”, nem todos têm condições econômicas, políticas ou sociais de exercer essa profissão com a ética que ela demanda. É por isso que a regulação da profissão e do ecossistema onde ela existe é urgente. A grande maioria dos profissionais não está em condições de falar “não” pra joguinho de aposta ou qualquer coisa que o valha. Como estamos lidando com isso?

O "livre mercado" defendido por muitos não garante ética profissional, sustento ou uma economia sustentável. Sem regulação, estamos afundando a cada minuto em um mar de, com todo respeito, merda. Atualmente, quem decide trabalhar com criação não tem absolutamente nenhuma régua sobre nada. Essa pessoa não sabe precificar, não sabe o que pode ou não pode fazer nem tem os meios para aprender e se informar sobre isso. As "boas práticas" são apenas convenções, e as grandes marcas tensionam essas convenções ao próprio favor.

É mais comum do que se imagina, por exemplo, uma marca pedir que a publicidade não seja sinalizada, o que vai contra as determinações do CONAR. No entanto, se uma marca grande faz essa solicitação a um criador pequeno, sem estrutura, que precisa daquele dinheiro pra pagar uma dívida, que poder ele tem pra recusar? Isso é apenas um exemplo.

Quem vai vencer: a blogueira que divulga pílula pra emagrecer ou o influenciador que divulga esquema de pirâmide?

É fácil embarcar na lógica da moralidade nesse caso. Traçar uma linha que separa hermeticamente os bons e os maus criadores, os bons e os maus profissionais, as boas e as más empresas. Obviamente que existem os golpistas, os pilantras e desonestos que, mesmo tendo todos os acessos e recursos pra agirem de forma ética, optam pelo dinheiro fácil. Essas pessoas e empresas obviamente devem ser responsabilizadas, investigadas e adequadamente punidas quando couber punição. Mas a “creator economy” não é formada majoritariamente por essas figuras caricatas que ilustram os sites de fofoca. Estamos falando de pequenos e médios criadores, profissionais de pequeno e médio porte que, repito, muitas vezes são empurrados pra esse segmento porque é o que tem pra hoje. 

Além disso, não podemos jamais ignorar o papel das big techs, que dispõem de todo o dinheiro e recursos pra combater a proliferação de práticas como esquemas criminosos de apostas em suas plataformas, mas escolhem deliberadamente ignorar o que está acontecendo. 

Sabendo disso, o que proponho aqui é discutir a materialidade da questão: as condições materiais que favorecem diferentes comportamentos. Numa sociedade maltratada, abandonada, hiperindividualista, sob a influência de corporações mais poderosas do que governos, que incentivos temos pra agirmos de forma ética? 

Nenhum, claro.

E aí eu volto à pergunta inicial: dadas as devidas circunstâncias, qualquer pessoa toparia fazer publicidade para um site de apostas? A resposta é que, atualmente, as circunstâncias já estão estabelecidas. Mas circunstâncias e conjunturas são construídas. Como construir as condições materiais pra que a ética prevaleça?

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